quinta-feira, 31 de maio de 2012

Ultra Trail da Serra de São Mamede

Há menos de um ano atrás aventurei-me na Ultra Maratona – Melides » Tróia, uma experiencia única, um desafio gigante e uma prova duríssima que nos leva aos limites do corpo e da mente.

Depois desta experiência, sempre pensei para mim:

- Este é o meu limite, este é o meu tecto. Os 43 km na praia, ora com maré cheia, ora com maré vazia, ou as duas coisas em simultâneo eram mais do que suficientes para me superar, ou, para eu considerar que atingira os meus próprios limites.

E acreditei com uma fé inabalável durante alguns meses, que esta prova seria suficiente para testar os meus próprios limites.

Não sei ao certo quando começou. Mas, a certa altura uma ideia apoderou-se de mim. Começou apenas como uma ideia, e depois sente-se germinar dentro de nós, a ganhar asas, a tomar dimensão e a crescer. Na minha Alma e no meu Corpo germinava mais um desafio, mais uma prova de grande superação. Agora o sonho era um Ultra Trail!

É quando eu descubro o Ultra Trail da Serra de São Mamede. Mas o UTSM é uma prova de três dígitos! Isso, são 100 km, caramba! Uma prova de 100 km é uma monstruosidade. Quanto mais, uma prova com 100 Km com um desnível positivo com cerca de 3400 m, com partida e chegada a Portalegre após passagem por Reguengo, Alegrete, alto de São Mamede, Apartadura, Porto da Espada, Portagem, Marvão, Castelo de Vide, Carreiras e Cabeço do Mouro, em semiautonomia e 24 h de tempo limite.


Pensei para mim:




- Isto não é prova para um simples corredor de poletão. Isto é demais para as tuas capacidades José Diogo! Mas a ideia transformou-se em vontade, em vontade de fazer um Ultra Trail. E essa vontade era tão forte, que mesmo acordado, já sonhava subir e descer trilhos por esses campos fora.



Nesse dia, liguei para o contacto de quem organizava os treinos livres, # on the trail to UTSM e falei com o simpático e acessível João Carlos Correia, que prontamente me convidou para aparecer e fazer o treino. Tanto eu como o João Correia eramos desconhecidos um para o outro.
Portalegre, dia 12 de Março:


É um treino de 42km na Serra de São Mamede num ritmo calmo, mas que traduz com perfeição as dificuldades e perigos que um Ultra Trail acarreta. Terreno irregular, com muitas pedras soltas e de inclinação acentuada, tanto a subir como a descer. Passagem por ribeiros, vedações, muros de pedra, veredas, descidas técnicas, etc. Dá-me uma boa ideia daquilo que posso esperar na prova do dia 19 de Maio. Fiquei encantado com o espirito da alcateia do Atletismo Clube Portalegre, gente bem-disposta, simpática e cativante. Resumindo, boa gente.


De Portalegre trouxe comigo 2 lições:
- O Trail é fantástico, mas de uma enorme exigência e sacrifício.
- Os amigos estão e fazem-se onde quer que vá e seja eu próprio.
Ourique, dia 19 Março:
Depois de alguns dias em processo de reflexão, decido inscrever-me. Para surpresa de alguns, não é João Carlos?

Portalegre, dia 29 de Abril:








Após convite do casal organizador UTSM, segui viagem dia 28 para não fazer a viagem (250km de ida) de madrugada no dia 29 e assim estar mais fresco para o treino na Serra de São Mamede. Fui recebido em casa do João Carlos e da Maria Vitorina de braços abertos e como se fosse da família. O meu obrigado aos dois. Ganhei amigos em Portalegre.


Faço o meu 2º treino de preparação na Serra de São Mamede, e que sensação maravilhosa, foi “trepar” a enorme e belíssima subida a Marvão pela poterna.

4 de Maio
Recebo um honroso e prestigiante convite do mestre João Carlos Correia para representar o ACP, o qual prontamente aceitei.
Agora tenho uma responsabilidade a dobrar. Pois, tinha decidido fazer esta prova em memória e em homenagem da grande mulher, da minha melhor amiga, – a minha Mãe, que vi partir no dia 23 de Março.
Ourique, dias 13 a 18 de Maio:
O nervoso miudinho aumenta, o nó no estomago é agora maior. Revejo os planos para o dia 19 de Maio, vezes e vezes sem conta. Os 100 Km parecem gigantescos e impossíveis de alcançar. Começo a colocar em causa toda a preparação.
Portalegre, dia 18 de Maio:
20h30 – Chegada a Portalegre. Faço check-in na Mansão Alto Alentejo, bem localizada, confortável, um espaço agradável.
21h15 – Jantar no Restaurante “Leva-me contigo”, com a minha Filipa, o meu Pai e o amigo António Marques. Será escusado dizer, que o meu jantar foi massa, ou melhor, dois pratos de massa. O convívio no jantar serviu para me serenar, a “amena cavaqueira” em que estivemos foi um bom prelúdio do que se iria passar no dia seguinte. O vinho era uma boa “pomada”, um tinto da Herdade Porto da Bouga, Alegrete, que recomendo vivamente.
23h00 – Recolhi ao quarto. Infelizmente não consegui dormir, dei voltas e voltas na cama, mas o sono não queria nada comigo, foi uma noite em branco.


Portalegre, Estádio Eduardo Sousa Lima - Assentos, dia 19 de Maio
03h00 – Depois de um bom duche, pequeno-almoço e de toda a logística (equipamento e alimentação) pronta e preparada, chego ao estádio Eduardo Sousa Lima - Assentos.

03h30 – Câmara de chamada, verificação do material obrigatório: Frontal acesso e com pilhas de reserva, mochila/cinto que suporte no mínimo 1 litro de líquidos, 1000 calorias, cerca de 4 barritas ou equivalente e apito.
Entre as 3h30 e às 04h00 – Várias fotos de equipa, mais fotos e muitos nervos a mistura, ultimam-se os preparativos para a grande Aventura UTSM.

4h00 – PARTIDA!!! Chovia bem e a temperatura era óptima. Que loucura, que emoção, que frenesim é ver e sentir 242 atletas, cada um com o seu próprio objectivo, cada um com os seus próprios desejos e sonhos, de partida para uma aventura de mais 100km.

Na confusão da partida, perdi o contacto com a alcateia, mas rapidamente encontrei umas centenas de metros adiante o amigo e colega de equipa Paulo Rodrigues, o qual acompanhei praticamente a totalidade do percurso. Uma companhia cheia de energia e boa disposição, que me animou, aconselhou e orientou durante a grande jornada. Obrigado Paulo Rodrigues. A estratégia estava delineada: chegar e chegar bem. Com cuidado, cabeça fria e nada de entrar em loucuras no início e em ritmos alucinantes. Alimentação e hidratação cuidada e reforçada em cada PAC.
Como o Paulo dizia:
- Não é como começa, é como acaba que interessa.

PAC 1 Viveiro Florestal 10km – A chuva continua, o andamento está vivo, talvez vivo demais. Mas por agora, estamos bem. Dorsal rubricado e siga para Bingo. Pelo caminho junta-se ao grupo Neville Suzman, um Australiano radicado em Portugal, e António Nunes do CRP Ribafria.
E se a memória não me atraiçoa, antes de chegar ao Alegrete, o João Paulo Albuquerque, mais um membro da alcateia, reforça o grupo e a presença do ACP.
Tanto o Paulo Rodrigues como João Paulo Albuquerque revelaram-se uns companheiros de viagem fantásticos, com enorme espírito de camaradagem, generosidade e vitais para o sucesso desta empresa.
Fazer 100km é uma tarefa enorme, agora imaginem, se forem sozinhos!?


PAC 2 Alegrete – 17km – Recordo-me que em Alegrete, para além do habitual controlo, “atasquei-me” no banquete instalado no coreto, foi um bocadinho de tudo, banana, marmelada, laranja, água e isotónico. Por esta altura, estava fresco, com força e animado pelo grupo que acompanhava, mas os 100km, ainda pareciam tão distantes.

O Paulo Rodrigues foi o animador de serviço, e em muito contribui para a boa disposição do grupo. Mas logo foi avisando, daqui para a frente, é para ir com calma, pois temos à subida às Antenas, e daqui até lá é quase sempre a subir. O sol já nasceu, e está um dia fresco, um dia perfeito para a prática desportiva.
PAC 3 Antenas – 30km – Ao aproximarmo-nos da subida às Antenas, vamo-nos apercebendo do que nos espera, imaginem uma “parede” de terra e pedras soltas sem fim, com o relevo acidentado e traiçoeiro como uma raposa. É com enorme dificuldade, mesmo a caminhar que se faz este prémio de montanha, digno de qualquer prova, seja onde for. Mas, também é aqui, que se separa o trigo do joio. E lá fui eu, e os meus companheiros, metro a metro, passo a passo, uma conquista por cada metro, uma recompensa por cada passo. Confesso que tive uma pequena (boa inveja) dos “titulares” dos bastões de trail, naquela infernal subida. Só mais uma curiosidade, as mãos incharam-me, bem como aos restantes. Isto deve-se ao facto de fazermos a subida a caminhar, e levarmos as mãos numa posição baixa, limitando assim o fluxo sanguíneo.
No fim da subida às Antenas, a maior recompensa: mais um festim para o estômago e para a alma. Comida, aplausos, amigos, e a minha Filipa e o meu José a torcerem por mim. Abasteci de comida e de carinho, e segui caminho com o Paulo e o João Paulo e os restantes.
Se a subida foi penosa, o “single track” não lhe ficou atrás, uma descida técnica, muito acidentada, repleta de surpresas.
PAC 4 Apartadura – 38 Km – A boa disposição impera, o entusiasmo é a marca neste PAC 4. E embora confiantes e animados, sabíamos que ainda faltava um longo caminho pela frente. A paisagem é bela, e há que saber também desfrutar o passeio e o que nos rodeia. Controlo e abastecimento e toca a mexer a pernas.
PAC 5 Porto da Espada – 48 Km – Mais um posto de controlo e alimentação. Por motivos logísticos dos próprios, senti aqui a falta do meu José, da minha Filipa e do amigo António que me vinham acompanhar desde a partida, nem sei explicar o quão importante foi a presença deles em cada PAC que passava com palavras de encorajamento que me enchiam de força de novo. Era como alimento para mim, directo para o músculo da Alma. Falando de alimento, por esta altura e de forma intervalada já teria ingerido uns 3 géis para suplemento alimentar. Pois, um esforço destes não se quer só com banana, marmelada e biscoitos.
Aproxima-se outro prémio de montanha (Marvão), este talvez menos exigente, menos forte, mas as pernas já tem mais de 50km.


PAC 6 Marvão – 58 km – Atrevo-me a dizer, que a “escalada” a Marvão foi difícil, terrível e penosa. O caminho de pedra, a calçada íngreme e escorregadia partiu-me as pernas, massacrou-me. Os mais de 50km nas pernas, já fazem a diferença. Depois da calçada, seguimos por um curto caminho de terra, até encontramos uma espécie de pequena vegetação baixa em redor do Castelo de Marvão e uma subida soberba, mas de grande pendente e dificuldade, até entrarmos em Marvão pela poterna.
Devo confessar que Marvão é simplesmente magnífico, e serviu de porta de entrada a um dos locais emblemáticos do UTSM seja simplesmente espectacular.
O amigo Javier Garcia, um espanhol de Cáceres que havia conhecido na segunda deslocação a Portalegre, apanhou-nos na subida de Marvão, mesmo na entrada da poterna. E se a memória não me falha, será sensivelmente por esta altura que se juntam ao grupo o Luís e o Inácio Serrazina, ambos do CRP Ribafria e o Sérgio Jerónimo do Atlético Clube de São Mamede.

Chegamos a Marvão às 11h50. E eu trazia o apetite de um “urso”, sabia que havia um prato quente e a possibilidade de duche e mudança de roupa para quem o tivesse previamente requisitado. Mas eu e os camaradas desta empresa, só pensávamos na sopa quente de legumes. Confesso, que não me lembro de ter comido uma sopa tão boa, tão revigorante, energética e espiritual como esta, repeti a dose e troquei para uns ténis mais macios, pois os Salomon estavam a massacrar-me os metatarsos. Volto a abastecer de alimento e sólido e liquido.
E num evento como este, um grande momento é ver caras amigas e familiares a apoiar-nos, o UTSM permite muito contacto com o público e é tão encorajador ouvir e sentir os nossos quando as pernas começam a falhar.
Nota: noto pela primeira vez, um erro na distância medida, o meu Garmin 305, regista um pouco mais de 60km em vez dos 58km anunciados.

PAC 7 – Carreiras – 67km – A descida de Marvão é complicada, a força já não é a mesma. Mas a mudança de ténis revela-se uma decisão acertada. Sinto-me mais fresco, mais leve e mais aliviado das dores nos pés. Foi uma “etapa” relativamente simples sem nada de relevante a registar. Nesta altura, disse para mim. Agora é até ao fim, nem que acabe de gatinhas. Abastecimento em mais um PAC simpático e bem servido. Mais um abraço aos meus, nesta altura, julgo que eles estariam mais cansados do que eu.

PAC 8 – Castelo de Vide – 74km – Adorei chegar a este PAC. Em primeiro lugar porque da Ermida, tem-se uma vista absolutamente maravilhosa sobre Castelo de Vide, depois porque adoro “rapel”, mas acima de tudo porque estava mais perto do meu objectivo, só já faltavam 26km. Mas nesta altura, já o meu Garmin registava mais de 77km, onde supostamente deveriam ser 74km.
Já o disse e volto a dizer, gostei particularmente do espirito do grupo ao qual pertencia, animado, motivado, nobre, com um enorme espírito de camaradagem e generosidade que se tornaram sem sobra de dúvidas vitais para o sucesso desta empresa. Sinto-me bastante honrado por ter convivido com estas pessoas numa prova assim. Mais uma vez, destaco a importância das minhas pessoas, sempre com a sua presença e mensagem de força.



PAC 9 – Convento da Provença – 88km – Foi onde sofri mais para chegar, onde a “etapa” parecia interminável e esgotante. O calor, a reserva de água esgotada, a distância abismal da dita “etapa”, e o cansaço acumulado fizeram o resto. Com todas as dificuldades, não desistimos e fizemos por tudo para chegar ao PAC 9, mais uma vez fomos um excelente exemplo de luta, desafio e perseverança.


Chegados ao Convento da Provença, supostamente aos 88km, mas os companheiros cujo relógio gps ainda tinha bateria falavam em cerca de 92 km. O importante agora era abastecer, hidratar e preparar-nos para o assalto-final. Senti-me derreado, e a palavra é mesmo essa. Estava exausto!
Mas, o objectivo e a meta ainda estão a cerca de 12km. E foi para isso que eu cá vim, para chegar ao fim, para ser um Finisher!

Despeço-me pela última vez dos meus e sigo caminho. Por esta altura, é difícil sentir alguma coisa, ou melhor, dói tudo: pés, dedos dos pés, braços, pernas, mãos, ancas, costas, ombros, etc. E já tudo fazia mal, ou eram as meias, ou era a mochila, ou a camisola. Ou seja, à partir de uma certa altura tudo nos faz mal, tudo é um peso imenso e faz diferença.






E lá fomos nós, a procura do caminho para Portalegre, do caminho para a meta no Estádio Eduardo Sousa Lima. Penosamente, fomos alternando entre uma corrida ligeira e uma caminhada nas subidas. Estes 12km pareciam não ter fim, até que avistamos Portalegre. E aí, tudo se modificou, uma luvada de ar fresco e de energia tomaram conta de mim.


A lembrança da minha mãe que me acompanhou do início até ao fim, toma agora conta de mim e dá-me uma força inexplicável, as minhas pernas correm agora, correm como se tivesse em passo de Maratona, ou de Meia Maratona. Quando antes apenas alternava entre uma corrida ligeira e uma caminhada. Este boost de energia espiritual, oriundos da melhor recordação da minha vida, da melhor e da bela amiga, do doce sabor da maternidade, da sábia e boa conselheira, - da melhor mãe do mundo levam-me até a meta como se fosse mais uma vez embalado no seu colo.

E assim, cheguei à meta no estádio Eduardo Sousa Lima. Envolto em lágrimas, agarro-me aos meus e fico feliz por ter terminado, e por ter homenageado a minha mãe. Mas suponho que nem esta prova é suficientemente grande para espantar todos os meus fantasmas.



Obrigado ao meu pai, José Raul!
Obrigado a minha namorada, Filipa!
Obrigado ao Marcelo!
Obrigado ao António Marques!
Obrigado ao João Carlos e a Maria Vitorina!
Obrigado ao Paulo Rodrigues e ao João Paulo Albuquerque!
Obrigado a prima Inês, Filipa e Afonso!
Obrigado a Ângela e ao Tiago!